“Sorte por longo prazo
a quem me beija e respeita,
mas sete anos de atraso
a cada maldade a mim feita”.
O Baobá (MDCXXVII)
Sentava-me. Ao seu lado, o esquerdo, ouvia histórias. De frente pro mar, por dentro da brisa, sopros da baía de águas claras de verde e de azul. Todos os domingos à tarde, quando o fim de semana dava aquela espreguiçada. Às quatro, a Martim Afonso se afastava lentamente do cais, igualzinho à canção, e lentamente ela começava a me contar que...
... Pedro e Dulce cravaram um coração em seu corpo, sangraram sua alma, só para eternizar a paixão, dois anos depois acabada. Incompatibilidade de bens;
... Lucas e Adélia ilustraram o tradicional martírio com uma flecha atravessando o coração transbordante de sangue, e uma das muitas indefectíveis inscrições amorosas – Unidos para sempre. Desunidos, nunca mais retornaram para ver a arte plástica da paixão;
... Luís e Belinha, menos corrosivos, inovaram: com canivete afiado, tiraram-lhe algumas cascas como lembrança. Contou-me que foram usadas como decoração do leito numa pousada chamada Para Sempre. A pousada mudou de nome. Chama-se, agora, Nunca Mais.
... assim, durante anos, sempre aos domingos, sempre à tarde, chegavam à ela casais de namorados, amantes de ocasião, apaixonados, escancarada e imaginariamente apaixonados eternos, uns, somente enamorados, outros – Lúcias e Paulos, Marios e Dirces, Robertas e Leonardos, todos, no pré ou pós gozo, julgando-se imortais naquele corpo centenário. Seringueiros do desamor, isto sim. (A ciência a identificou como um baobá, gênero masculino. Mas, para mim, único a saber e ouvir suas dores, era Maria Gorda, a que enfeitava a rua com sua generosidade e encantadora postura – dois metros de diâmetro, dez de altura, copa de belos espaços cujas folhas, vistas do alto, formavam uma cama aconchegante; vistas de baixo, redesenhavam o céu em cumplicidade com as nuvens).
Certa vez, endiabrado de amor, não pensei nem uma vez. Fui dizendo que ela estava ficando feia, abatida, seus galhos doentes de tão secos, suas raízes rachando a calçada, rompendo a rua. Pediu-me que a regasse – “com água do mar, hein!” – enfatizou na rouquidão da voz. Atravessei a rua, nada mais do que quatro metros incluindo a calçada, que dava para a areia da praia. Com as mãos em concha, fiz tantas idas e vindas quantas necessárias para regar a base de Maria. A cada vez que sentia o líquido em seu corpo, remoçava, sorria, seus galhos e folhas contorciam-se, puro prazer. Pouco depois, recompunha-se, firme. A Gorda estava plena, aparentemente não mais sofria dos cortes profundos, marcas de amores brutos, inconseqüentes. Não entendiam que Cupido não era plantonista domingueiro, e Maria muito menos palanque.
Pergunto se estava ou fora apaixonada um dia. Olhou-me profundamente, bem dentro de mim, como só as marias sabem, como só as marias gordas e vizinhas do mar invadem e penetram. Antes que respondesse, olhou para o alto. Um tiê-sangue pousara em sua copa. Ela fez um suave movimento. Pareceu-me acomodá-lo. Em seguida, respondeu que sim. “Estou, quero estar apaixonada, sempre, mas não cravo corações, não sangro ninguém. Só a mim. E sinto uma dor terrível. É um corte muito profundo”.
Mais adiante eu saberia desta dor.
Chego mais perto, sem me importar com a posição pouco confortável
e própria a câimbras – as pernas encolhidas, na contramão do alongamento mais do que urgente pelo tempo da conversa. O sino da Igreja do Bom Jesus do Monte anunciava as seis horas da noite, e a Martim Afonso atracava no Cais Pharoux, na Praça Quinze.
Abro parênteses: Eu imaginava, sempre que a Martim Afonso iniciava sua viagem para o Rio, que nós dois um dia iríamos embarcar e fazer um passeio pela Baía da Guanabara. A Martim Afonso era uma barca muito bonita, larga, sempre pintada de novo, toda branca. Não era barulhenta e a fumaça que saía da sua chaminé se misturava com as nuvens brancas de Paquetá. Por lá ficava. Um passeio romântico, apaixonante. Sonhava. Afinal, entre parênteses pode-se tudo. Fecho-os agora.
Maria retoma a conversa, ritmo de confissão:
- Ele chegava sempre devagar, trazido por uma onda amiga, cúmplice.
Maria acariciava as palavras, lambia as sílabas, gozava com a sua imaginação, estava certa de que me encantava. Continuava:
- Ele sentava neste mesmo lado em que você está, nesta mesma posição. Não ficava apenas me ouvindo. Me acarinhava. Um homem de alma grande e delicada. Isto é possível, meu jovem”.
Acedi num gesto de cabeça, delicadamente.
- Suas mãos, curativas, tiravam as dores destes muitos corações que você está vendo, que não são meus. E ele me dizia cada coisa!!! Lembro que num dia de chuva me ensinou a cerrar a copa. Assim estaríamos protegidos. Foi o que fiz. Daí em diante, foram momentos de linda, intensa, alucinante paixão. Ele me freqüentava, e nossos sussurros foram se multiplicando, tornaram-se vozes, tornaram-se coro, às vezes em terças, outras em quintas, ao final em uníssono. Estávamos juntos. Seu carinho era música”, professorou Maria.
Houve um momento em que chorou. Contou-me que era noite e que quase ao dormir foi invadida por uma sensação de perda. Ouvira o barulho de braçadas. Mal pressentimento. Olhos medrosos, quis fechá-los. Ao mesmo tempo, atraída, curiosa, fixou-os na direção do mar. Chorou. Seu amor mergulhara levando dela o coração e dúvidas quanto à próxima música; com ele, a ternura de amá-la, fazê-la apaixonada. Restaram-lhe todos os outros corações que não eram seus, que se multiplicavam, e feriam-na. Tive que acalmá-la.
Voltei no domingo seguinte. Já não sabia se queria apenas vê-la, ouvi-la ou, até, apaixonar-me, sem sangrá-la. Se apaixonado, bastava-me ficar a seu lado, protegê-la dos outros, vá lá que sejam, apaixonados. Se para ouvi-la, a atenção carinhosa. Decidi por ouvi-la, apaixonadamente. Ao ver-me, sorriu, balançou galhos, dançou folhas e até cantou um trecho de Luar de Paquetá: “Jardim de afeto / pombal de amores”. Trocamos olhares. Disse-lhe que estava linda, elogiei sua voz. No fundo, estava mesmo era feliz pela sua alegria com o nosso reencontro.
- Que bom que veio. Estava mesmo lhe esperando.
- Eu também estou contente. A semana custou a passar.
- Pois é, dizia ela.
- Pois é, dizia eu.
O fato é que havia algo no ar além dos seus galhos muito altos, junto das nuvens. Estas não despregavam os olhos de nós. Ao mesmo tempo, concediam um clima de tranqüilidade, suaves sombras. O sol não queimava, aquecia. Ele também nos olhava, disfarçadamente, rabo de olho. Neste domingo a tarde estava mais aconchegante. Sei não...
Novamente ao seu lado, já não mais ouvia suas histórias. Ela também não fazia mais questão de contá-las. Falamos de nós somente. Pronto, nos agarramos à prudência, estávamos nos contendo. Medo? Mais de cem anos de paixões cravadas no peito, foi ela mesma quem recomeçou a conversa.
- Pensei bastante em você. Contei as horas, tentei encurtar o tempo. Agora você está aqui, bem perto.
Serena e timidamente, afastei-me um pouquinho. Ela notou. Nada falou. Mas eu, de viés, flagrei seu risinho gostosamente safado.
- Como eu ia dizendo, contei as horas, tentei encurtar o ...
- Eu também. Sou bom contador, gracejei. Parecíamos duas crianças. Estava bom.
- Você não vai me interromper agora, vai?, repreendeu-me, porém com um dengo na voz que eu ... Sei não. Bem -, continuou -, pensei muito e em tudo o que falei pra você. Cheguei até a me questionar. Acontece que senti você tão atencioso, carinhoso mesmo, que não me arrependo nem um pouquinho. Só que agora não tenho mais nada para contar. Talvez daqui a alguns anos, alguma paixão daquelas que eu sempre quis. O que você acha?
- Acho que no próximo domingo você já terá algo para contar. Sabe, a Martim Afonso estará deixando o cais, o tiê-sangue pousará em sua copa, ninguém mais irá lhe sangrar, você estará completamente cicatrizada, estaremos juntos, e,quem sabe?, num passeio pela Baía de Guanabara. Ah, sim, ao invés de somente aos domingos, estarei ao seu lado todos os dias, todas as quatro horas da tarde. E não se preocupe se eu quiser mergulhar, porque eu, Maria, eu sou a paixão além dos tempos, aquela que não faz sofrer, mas delirante; que não escraviza, eterniza. A paixão até hoje não vivida, nem por você, nem por mim, muito menos por aqueles que a feriram. Eu sou a sua paixão, Maria, eu sou a sua história.
terça-feira, 1 de junho de 2010
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